17 de jan. de 2009

Limpeza no baú

Resolveu que naquele dia arrumaria todas as lembranças que carregava. Não as colocaria em ordem cronológica ou alfabética, apenas queria tirar o pó dos seus pensamentos e, agora com algum espaço de tempo, avaliá-los. Ainda não sabia qual destino daria a eles.

Começou pelas lembranças de infância e riu de cada uma delas. Como pode ter dado tanta carga de emoção para coisas que hoje julga tão pequenas? 

Então pensou que se um dia voltasse a fazer esta limpeza, certamente acharia engraçado o quanto sofre por causa de seus "grandes problemas" de hoje. Continuou rindo das lembranças de infância, mas agora com uma certa deferência às cicatrizes (a maior parte delas na pele) e chegou até a se emocionar com a memória do dia que reclamou que só tinha pão com manteiga ou quando reclamou que não era aquele o brinquedo que queria. Mesmo assim as guardou.

Aproveitou a consciência recém adquirida e passou para a pasta dos problemas. Iria começar pelos grandes, claro! 

Mas ai veio a questão: quais seriam os grandes?

Resolveu, então, pegar os que viessem primeiro. Chegou a conclusão de que, de fato, nenhum deles deveria estar ali . Então foi dividindo o conteúdo desta pasta entre outras duas: "experiências" e "nada". Nesta primeira foram parar os que fizeram dele um homem melhor, mais forte e até mais generoso. Na pasta "nada" foram os antigos problemas que o fizeram se arrepender até de tê-los guardado... eram embrulhos muito grandes, que ocupavam enorme espaço e que só estavam cheios de mágoas! Todos para o lixo... sem olhar.

As lembranças das brigas foram pelo mesmo caminho.

Então resolveu partir para a mais difícil de todas as caixinhas: a dos relacionamentos. Nunca conseguira olhá-las de forma imparcial. Todas elas tinham um laço enorme de culpa quando guardou. Culpa dele. Culpa delas. Algumas com embrulhos tão iguais que parecia tolice ter guardado duas memórias assim, mas era tanta culpa amarrando essas lembranças que ele jamais pensara em sequer pegá-las para ver.

Então suspirou fundo e resolveu que aquele seria o dia em que abriria a Pandora de dentro do seu peito. E ficou absurdamente surpreso ao ver que as fitas estavam completamente poídas. Nenhuma culpa resistiria a tanto tempo. Culpas dele e dela indiscriminadamente destruídas, pois a culpa não era de nenhum dos dois. Nunca foram.

E assim foi revisitando cada uma das lembranças dos relacionamentos passados. Era impossível perder o sorriso no canto do rosto! Como pode ter feito aquilo? Ter sido tão impulsivo? E aquela atitude? E ria de alegria em saber que, diferente do que sempre pregara, não "havia perdido seu valioso tempo com ela."

Viu que as garotas não eram tão cruéis quanto ele pintava nas mesas de bar e, ao mesmo tempo, se convenceu que não fora aquela vítima que sempre acreditou. Todos tiveram suas cotas de sofrimento. Todos tiveram suas cotas de experiências.

Então achou que não deveria guardar todo aquele tesouro com ele. E, após limpar e olhar com clareza as suas lembranças, resolveu devolvê-las e reparti-las com as suas donas. Sabia que não teria mais nada com elas, mas não podia deixar memórias tão valiosas se estragando no fundo de um baú. E o que é pior, ocupando espaço para novos momentos.

Escreveu a cada um dos ex-amores e contou tudo que viu ali. Era como se estivesse devolvendo os discos e livros favoritos da sua antiga esposa, mas sem o tom de vingança que tal procedimento carrega. Devolveu aqueles "livros" e "discos" justamente porque elas gostavam deles muito mais do que ele.

Ficaram ambos mais leves. O baú e a alma.

Os ex-amores ainda não responderam. Devem estar sem entender - ou limpando seus baús.

7 comentários:

Unknown disse...

Poxa, isso porque você disse que não se dava bem em narrativas... mas, por um momento, vi a mim: as minhas narrativas. Talvez a caracteristica de sua narrativa lembre muito as minhas, ou não. ou você tenha um estilo pró´prio tão lindo que eu quero comparar ao pouco que consigo escrever.
Saiba: o post ficou lindo. ótimo. perfeito. não poderia ter ficado mais leve: tão leve quanto o baú e a alma...
Beijos

Vanessa M. disse...

É preciso dá leveza ao seu baú de coisas e a sua alma.

Isso é indispensável para a continuação de sentimentos.

Beijo

Thiago Augusto" disse...

preciso fazer isso com o meu :|

Heduardo Kiesse disse...

aqui temos uma verdadeira escrita!!!

uau!!

beijinhos

gostei imenso mesmo!!

Mafê Probst disse...

Acho que revirar baús e limpá-los deve, realmente, nos deixar mais leves.
Quanto tempo que não o faço...

Belíssimo texto, rapaz!
Beijo doce, meu.

Anônimo disse...

Puxa, também preciso dar uma organizada no meu baú de lembranças para para os meus sentimentos seguirem em frente com mais facilidade.
Lendo, lembrei da música Resposta do Skank

Rui Carlo disse...

Tô amando teus contos, tuas narrativas que surgem como que sem propósito
teu humor seco, quase lacônico, meio irônico, mas agradável de ler... deleito-me em tuas letras...
deverias tornar isso tudo em livro, em coletânea... são riquissimos teus pensamentos e se vc permitir usarei alguns em aulas minhas - bj